quinta-feira, 12 de março de 2009

Estado Novo: qual ideologia ?

No Brasil, a acelaração e a generalização da economia capitalista aconteceram durante a Era Vargas e sob o predomínio de um pensamento autoritário, mas também nacionalista, que se via na obrigação de criar as condições institucionais para o desenvolvimento de uma moderna sociedade orgânica, com forte presença estatal (FONSECA, 1999: 191). O Estado Novo, como regime autoritário e modernizador em vários sentidos, a começar pela instituição do moderno Estado-nação e de seus órgãos técnicos, mesmo que se distancie da experiência fascista, pela falta de um movimento de mobilização das massas que o antecedesse e perpassasse sua existência, causando uma revolução, se singulariza ao pressionar por uma modernização que se afasta de uma maior distribuição de recursos e possibilidades de autonomia individual e coletiva, indo ao encontro da idéia de um movimento político regressivo (NEUMAN, 1969: 303) e aproximando-se daquilo que uma vasta literatura na área das ciências sociais tratou como modernização conservadora.

O impacto e a profundidade do Estado Novo, mesmo podendo ser capturados pela forma interpretativa da modernização conservadora não se aproximam dos resultados econômicos obtidos pela via prussiana para o capitalismo, quando através da centralização do poder, entre o final do século XIX e o início do século XX, foi possível organizar uma comunidade nacional e transformar esse país em uma nova potência industrial e militar, retirando-o da periferia do sistema capitalista mundial e trazendo uma forma de modernização concorrente ao modelo liberal, que mesclava continuidade e mudança, mantendo um espaço suficiente para a antiga aristocracia agrária controlar o processo que, com o tempo, levaria a uma desagregação do seu próprio poder, por meio de um Estado não apenas interventor, mas redistribuidor de recursos. Essa comparação é interessante, em especial por levar-nos a perceber, antes de tudo, que a chegada da sociedade e da política de massas na Alemanha pertence a esse mesmo contexto histórico. Um arquiconservador, Bismarck teve que enfrentar a organização da classe trabalhadora em um partido de massas, a social-democracia, contra a qual aprovou no parlamento alemão leis anti-socialistas rigorosas. Na mesma medida em que tratava de evitar o associativismo político radical, Bismarck deixou uma extensa regulamentação estatal no campo previdenciário, assim como deu continuidade a presença do Estado como gestor das paixões políticas, estimulando o nacionalismo.

Esses elementos de contenção aparecem no Brasil: ataque à esquerda, leis que amenizam o conflito entre capital e trabalho e nacional-estatismo formaram a base da política de Vargas nos anos 30. A resposta de Vargas à crescente política de massas do seu tempo, no entanto foi uma revolução conservadora bastante mais limitada.

Então, qual ideologia teria dado sentido ao Estado Novo ? Em primeiro lugar, deve-se dizer que esta não foi unitária, nem definitivamente elaborada no plano das idéias políticas. Foi uma apropriação de vários elementos que marcaram não só o momento conservador e autoritário da década de 1930, mas que se acumulavam na história republicana do Brasil. O âmago dessa ideologia foi o Estado, representado na figura de Getúlio Vargas. Ele encarnou razão e sensibilidade, autoridade e afeto, ousadia e moderação. O Estado Novo foi uma experiência autoritária que extinguiu a autonomia dos estados, levou o presidente a governar por decretos-lei, censurou a imprensa, perseguiu e encarcerou sistematicamente os seus opositores. O jargão político do regime, “trabalhadores do Brasil”, por sua vez, colocava em cena uma comunidade que acabava de ser inventada pelo poder das palavras. E essa era uma comunidade política, o que expunha até que ponto o país havia avançado quanto à aparição de uma sociedade de classes, mas também o quanto se apostava na formação de uma democracia centralizadora e incorporadora das massas trabalhadoras urbanas, com o intuito de refazer o sentido da convivência social, como também de mover o Estado Novo à continuidade, o que acabou se realizando com a manutenção do mais significativo de seu arcabouço institucional e político durante a democracia que o sucedeu.

O Estado Novo associou corporativismo, tecnocracia, modernismo e nacionalismo, numa composição que possuía cores tradicionais e tonalidades avançadas para o Brasil daquele momento. Do lado da tradição ficou o setor da Educação Pública, que não avançou no sentido da universalização do ensino fundamental, isso sem considerarmos a falta de uma formação mais atualizada dos estudantes, sobretudo na área da divulgação científica. Do lado do avanço, deve-se registrar a criação de órgãos que serviram como referência à organização e planejamento estatais: o Departamento de Administração e Serviço Público (DASP) e o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

De difícil definição e entendimento por parte dos mais intérpretes mais exigentes, o Estado Novo prima pela sua duradoura carreira de polêmicas, sendo recentemente apontado como parte de um passado que precisaria ser definitivamente arquivado, mas que ainda não foi. A maior proeza deste regime foi a de ter enraizado uma vertente do pensamento político brasileiro, o estatismo. O Estado brasileiro pós-30 torna-se “o agente central da transformação do país” (TOURAINE, 1989: 218). A centralidade estatal procurada por Vargas, no entanto, não eliminou os muitos outros elementos que fazem parte da política brasileira e que continuaram fluindo em pleno autoritarismo: clientelismo, acordos pessoais, enfim, a influência do privado na esfera pública. Como em Casa Grande & Senzala, de Gilberto Freyre, o Brasil do Estado Novo conteve uma busca incessante pelo “equilíbrio de antagonismos”. Mas diante de um mundo cada vez mais impaciente quanto aos posicionamentos políticos, devido à guerra e à crise da civilização ocidental, o regime de Vargas surpreendeu ao deixar os seus afetos fascistizantes e invadir a pátria de Mussolini. Será que só para mostrar que o Brasil não é para iniciantes ?

Bibliografia:

ARAÚJO, Ricardo Benzaquem de. Guerra e paz. Casa-grande e Senzala e a obra de Gilberto Freyre nos anos 30. São Paulo, Editora 34, 1994.

__________________________. O dono da casa. Notas sobre a imagem do poder no mito Vargas. Religião e Sociedade, 13/2, julho de 1986, pp. 102-122.

FONSECA, Pedro Cezar Dutra. Vargas: o capitalismo em construção. São Paulo: Brasiliense, 1999.

MOORE Jr., Barrington. As origens sociais da ditadura e da democracia. Lisboa: Edições Cosmos, 1975.

NEUMAN, Franz. Estado Democrático e Estado Autoritário. Rio de Janeiro: Zahar, 1969.

TOURAINE, Alain. Palavra e sangue. São Paulo: Unicamp, 1989.

Trecho da palestra "Estado Novo: qual ideologia ?", apresentada no seminário sobre 0s 70 anos do Estado Novo, realizado pelo departamento de Letras da UERJ em dezembro de 2007. Posteriormente publicada como capítulo do livro de PEREIRA, Victor Hugo Adler e PONTES,Geraldo (Orgs.)O velho, o novo, o reciclável Estado Novo.Rio de Janeiro: De Letras, 2008.

Nenhum comentário: