O conceito de cultura política consolidou-se na historiografia internacional após a redescoberta do campo da história política. Entre os historiadores franceses esse movimento em defesa do valor e do interesse em estudar a política, em boa parte liderado por René Remond, teve como “lugares de eleição” o Instituto de Estudos Políticos de Paris e a Universidade Paris X Nanterre (BERSTEIN, 1998:349) Os especialistas que hoje reivindicam a primazia dos ganhos conceituais agregados a esse termo pertencem a uma esfera em comum com aqueles que reivindicaram os conceitos de acontecimento, identidade, sociabilidade, geração e memória para dar conta da dinâmica pertencente ao campo político, buscando as suas especificidades em relação a áreas que anteriormente o colonizavam, como o econômico e o social. Eles conseguiram se impor contra a posição corrente à época da fundação da revista dos Annales e da criação da VIª Seção da École Pratique de Hautes Études, então presidida por Lucien Febvre, mas sobretudo durante os “anos Braudel”, quando uma história política strictu sensu era considerada improcedente, pois reunia “um número infindável de defeitos” como os de ser “elitista, anedótica, individualista, factual, subjetiva, psicologizante” (FERREIRA, 1992:265).
A recente retomada do político teve matrizes antropológicas e manteve um diálogo incessante com as Ciências Sociais, em particular com a sociologia compreensiva de Max Weber, George Simmel e Alfred Schutz. Esses estudos levaram a uma releitura de termos clássicos do vocabulário sociológico. Partindo por vezes de Clifford Geetrz, muitos historiadores do político fizeram uma releitura do termo ideologia fora dos enfoques tradicionais, que o antropólogo sintetizou como sendo a “teoria do interesse” e a “teoria da tensão” ( Cf. GEERTZ: 1989) .
A “teoria do interesse”, segundo Geertz, nasceu no marxismo e tornou a ideologia uma arma utilizada pela classe dominante para exercer o seu predomínio em uma sociedade conflitiva como a capitalista. Essa é uma interpretação na qual a existência social precede a existência individual, daí a observação do antropólogo acerca de sua “psicologia demasiado anêmica e sua sociologia excessivamente musculosa” (Idem: 172). A “teoria da tensão” parte da noção de uma “má integração crônica da sociedade”, que aparece nas suas “antinomias insolúveis”, encontradas na relação entre “liberdade e ordem política”, “estabilidade e mudança”, “eficiência e humanidade”, “precisão e flexibilidade”, revelando aspectos subjetivos que, em certa medida, foram levantados pela Escola de Frankfurt, também tributária de Marx (mais propriamente dos manuscritos do Jovem Marx), mas unindo-o a uma certa leitura de Sigmund Freud, em particular nas contribuições de Herbert Marcuse e Erich Fromm. Em sua crítica ao que considerou como visões apriorísticas, Geertz colocou-se a favor de uma abordagem que entende a “ideologia como sistema cultural”, com a qual se pode obter um “mapa da realidade social”, não sendo mais a ideologia um elemento de inversão ou de ocultamento da realidade, mas parte da sua constituição, como um fator que orienta a ação individual, sem, contudo, submeter esta ação a um imperioso sentido final.
Anterior ou paralelamente, historiadores envolvidos em debates de outra natureza, voltados à crítica dos estruturalismos, também tocaram na relação entre cultura e política. No marxismo, E. P. Thompson levou adiante seus estudos sobre a formação da classe operária aproximando política e cultura, cultura e política, enfim, buscando entender as peculiaridades de uma cultura política de classe. Mas se existiu esta afinidade não houve nenhuma auto-percepção da mesma que levasse à necessidade de uma avaliação teórica e um posterior desenvolvimento de pesquisas a partir deste arcabouço conceitual. Na história cultural francesa do início dos anos 1970, Michel De Certeau, embora preocupado com outra sorte de questões, como a apropriação cultural, a história da leitura e o papel dos indivíduos na criação do cotidiano, “as artes do fazer”, possui similitudes que não devem ser esquecidas ou caladas. Mesmo sem se aprofundar (ou talvez até mesmo considerar) o conceito de cultura política, Thompson e De Certeau colocaram algumas questões relevantes quando se quer discutir o assunto. Falar de cultura política é falar naquilo que os movimentos sociais e políticos carregam de específico e muitas vezes contraditório, falar de cultura política é tratar dos elementos simbólicos da adesão e/ou rejeição a determinados projetos de poder e autoridade no campo político. Mas falar de cultura política é perceber a política como uma visão de mundo, como uma atitude perante o mundo que se expressa no agir, no falar, no vestir, no gesticular.
Uma arqueologia do conceito de cultura política, no entanto, nos leva a cientistas políticos que trataram a questão democrática pela presença de uma “cultura cívica” participativa. Um retorno ao século XIX indica que Alexis de Tocqueville já havia pensado questões como essa ao tratar das peculiaridades da democracia na América, mas o conceito começou a conhecer o seu desenvolvimento próprio a partir da contribuição dada pela antropologia norte-americana da “escola da personalidade e cultura”, que moldou a teoria do “caráter nacional” (KUSHNIR & CARNEIRO, 1999: 230). Na ciência política contemporânea, os estudos de Gabriel Almond e Sidney Verba foram os que tocaram mais diretamente nessas questões. Conhecidos como a corrente “desenvolvimentista” dos estudos políticos, estes dois pesquisadores consideravam a possibilidade de haver etapas ou níveis no desenvolvimento político, desde uma “cultura paroquial”, característica de estruturas políticas tradicionais, passando por uma “cultura súdita”, própria de estruturas políticas autoritárias, até uma “cultura ativa”, típica de estruturas liberais-democráticas. Devido a esse sentido finalístico, o modelo de Almond e Verba acabou sendo considerado uma abordagem prejudicial e limitada, alvo de críticas e contraponto ao que acabou se consagrando posteriormente como cultura política.
Os anos 1990 conheceram um freqüente afastamento dos cientistas políticos em relação ao conceito e uma apropriação cada vez maior por parte de historiadores, que se habilitaram a escrever sobre muitos assuntos da história política sob este enfoque: Serge Berstein, Jean François Sirinelli, Michel Winock, Raoul Girardet, Phillipe Tetard, Antoine Proust, Pascal Ory, para ficarmos só entre os franceses, investiram seus esforços em maior ou menor medida neste sentido. Outros dois pontos a serem sublinhados são: 1) que o encontro entre história e cultura política aconteceu em meio à afirmação da História Cultural, tendo esta última legado conceitos importantes, que estão na sua base analítica, como o de representação; 2) que esse encontro aconteceu quando os estudos históricos passaram a considerar cada vez mais as individualidades, revendo conceitos macro-sociológicos e seus possíveis determinismos.
Bibliografia:
BERSTEIN, Serge. A cultura política. In. RIOUX, Jean-Pierre & SIRINELLI, Jean-François. Para uma história cultural. Lisboa: Editorial Estampa, 1998.
FERREIRA, Marieta Morais. A nova “velha história”: o retorno da história política. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 5, n. 10, 1992.
GEERTZ, Clifford. A ideologia como sistema cultural. In. _______________. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1989.
THOMPSON, E. P. A formação da classe operária inglesa. São Paulo: Paz e Terra, 1989.
DE CERTEAU, Michel. A invenção do cotidiano. Petrópolis: Vozes, 1994.
KUSCHINIR, Karina & CARNEIRO, Leandro Piquet. As dimensões subjetivas da política: cultura política e antropologia da política. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 13, nº 24, 1999.
Obs. Esse texto é parte da comunicação apresentada no II Seminário Nacional de História da Historiografia, na Universidade Federal de Ouro Preto, em agosto de 2008, "Cultura Política: História e possibilidades de um conceito".
2 comentários:
Parabéns pela sua iniciativa. Estou divulgando seu blog no meu, http://portaldehistoria.blogspot.com e gostaria que você também o conhecesse e deixasse sua impressão lá.
Meu querido Sérgio,
Primeiramente, parabéns pelo blog e e pelo texto sobre cultura política!
Gostaria, contudo, de assumir o papel de "advogado do diabo" e apontar algumas lacunas. Primeiramente, não vi nenhuma menção a Jacob Burckhardt (A Cultura do Renascimento da Itália) e Johan Huizinga (Outono da Idade Média). Ambos autores são considerados como seminais, por Peter Burke (O que é História da Cultura).
Outra referência, que não vi foi à obra de Peter Gay, quando você menciona a importância de Freud para os historiadores.
No campo mais específico da ciência política, senti falta de alguma menção -- mesmo que negativa -- a Samuel Huntington (Choque de Civilizações). Embora eu não concorde com sua tese, não podemos esquecer que é toda uma obra construída a partir de um (falso) conceito de cultura.
Tudo isso sem mencionar a importância fundamental de Foucault, com sua idéia de discurso, e Edward Said (Orientalismo). Mais dois autores que, na minha opinião, lidaram diretamente com o conceito de cultura política. Ou eu estaria errado?
Espero que você não leve a mal estas minhas rápidas observações. São apenas uma espécie de desculpa, para podermos iniciar um profícuo debate sobre o eterno debate entre a história (na minha opinião, "Humanidades") e as ciências sociais. (Pelo menos foi assim que aprendi, a partir de minhas leituras da historiografia anglo-saxônica.)
Aguardo ansiosamente seus comentários aos meus comentários!!!
Um forte abraço,
Alexandre
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