domingo, 23 de maio de 2010

Política educacional e política legislativa na República liberal-democrática de 1946

O desnível entre as duas grandes áreas do campo político-pedagógico pós-Estado Novo ― formado por representantes das escolas particulares e pelos defensores da expansão da rede pública escolar ― se situava na capacidade de articulação política de cada um dos lados. Apesar de terem atingido a participação institucionalizada, que lhes coube a partir de comissões, órgãos e diretorias de destaque no planejamento e gestão educacionais; além de formarem um grupo heterogêneo, os renovadores (principal grupo de pressão a favor da expansão da rede pública escolar) tiveram dificuldades em encontrar representantes no Congresso Nacional dispostos a negociar a aprovação de projetos a favor de suas ideias, transformando a sua política sociológica em política legislativa.

Influentes na articulação com o Poder Executivo, quando este necessitava de suporte técnico para as suas decisões, os renovadores auxiliaram os ministros Clemente Mariani (governo Dutra) e Clóvis Salgado (governo Juscelino), no Anteprojeto da LDB (1947-1948) e na atualização deste com o fim de apresentá-lo junto a Comissão de Educação e Cultura da Câmara dos Deputados (1957). Por outro lado, entre a apresentação e a aprovação destes documentos, em território dividido pelas disputas partidárias, muito daquilo que recebera sanção dos renovadores se perde em meio a artimanhas políticas que fugiam ao seu controle.

Se formos do campo político-pedagógico ao campo político-partidário, encontraremos durante mais de uma década, contada a partir do retorno à competitividade eleitoral, a presença do deputado Gustavo Capanema (eleito pelo Partido Social Democrático, de Minas Gerais) como principal porta-voz do centralismo e do conservadorismo educacionais. Queira-se ou não, o ex-ministro da Educação (1934-1945) desempenhou papel estruturante neste campo, opondo-se às mudanças que poderiam provocar a substituição do aparato legislativo advindo do Estado Novo: a principal delas, sem dúvidas, decorrente da aprovação da LDB.

A participação política de Capanema depois da Assembleia Nacional Constituinte (ANC) de 1946, bastante influenciada por ele no seu capítulo sobre educação e cultura, caracterizou-se pelo poder de veto. Do Parecer dado em julho de 1949 à Comissão Mista de Leis Complementares, até 1958, quando cumpriu o seu último mandato na Câmara Federal, afastando-se no ano seguinte, apesar de reeleito, para ocupar a vaga de ministro do Tribunal de Contas da União, Capanema foi diversas vezes aparteado e/ou citado por parlamentares da União Democrática Nacional (UDN) e do Partido Libertador (PL), que o acusaram de impedir a reforma educacional. No discurso de 30 de maio de 1957, o deputado Coelho de Souza (PL) sintetizou a ação de Capanema na Câmara Federal:

“No ano de 1953 iniciou-se, então, na Comissão, a grande ofensiva no sentido de se alcançar a remessa do projeto de diretrizes e bases a este plenário. Os deputados apresentaram emendas aos vários capítulos e os relatores destes emitiram seu parecer. Ao mesmo tempo, porém, em que se intensificava na Comissão a ofensiva, reforçava-se no plenário e fora mesmo dele a contra ofensiva do nobre deputado Gustavo Capanema. Não estou fazendo nenhuma acusação ao deputado Gustavo Capanema. Não é de meu feitio nem de minha ética parlamentar acusar colegas presentes ou ausentes. Estou apenas reconstituindo fatos com um rigoroso animus narrandi, sem nenhuma glosa. Assim é que, naquele mesmo local, o deputado Gustavo Capanema, respondendo a uma interpelação do deputado Rui Santos, disse que o projeto de lei de diretrizes e bases era contra a pátria e enquanto S. Excia. exercesse a liderança da maioria nesta casa, ele não seria aprovado”.


Em artigo publicado na RBEP ao término de 1959, Anísio Teixeira refletiu sobre a paralisia do Estado provocada por este “deixar ficar generalizado”, sustentado, como veremos adiante, na primazia do PSD. O educador afirmou que tal situação levava à:

“expansão desordenada e incongruente do ensino particular, promovido por bispos e sacerdotes cheios das mais puras intenções e sem recursos, por “inocentes” campanhas de educandários gratuitos e, também, por espertos homens de empresa, como se diz hoje, que lobrigaram no abandono público uma oportunidade de lucros ou prestígios fáceis...”

Depois de Gustavo Capanema ter sido o principal moderador dos debates educacionais no legislativo federal, o deputado Carlos Lacerda (UDN-DF) roubou a cena política com dois substitutivos ao projeto da LDB, datados de 26 de novembro de 1958 e 15 de janeiro de 1959. Enquanto Capanema procurava reafirmar a unidade nacional mantendo a uniformidade dos sistemas de ensino, e com isso dando sobrevida a uma legislação incongruente face ao ânimo democrático pós-Estado Novo, Lacerda propôs reduzir a presença do Estado entregando à iniciativa particular o desafio de promover a educação democrática pelo aumento do número de vagas. Negava-se em ambos os casos o ideário renovador, seja pelo excesso ou pela falta de regulamentação estatal.