domingo, 20 de setembro de 2009

Instruir ou formar ? O debate educacional da revolução de 1930.

A ênfase no aspecto formativo encontrada na reforma do ensino secundário do ministro Francisco Campos em 1931 estava de acordo com as demandas pedagógicas dos principais grupos que buscavam a hegemonia do campo educacional: católicos e renovadores.

Naquele momento, a palavra formação substituía a palavra instrução, utilizada na Primeira República. O fracasso da educação reduzida à mera instrução, conforme a letra e o espírito da Constituição de 1891, sobressai na narrativa de Alceu Amoroso Lima sobre a sua vivência escolar no Gynasio Nacional – nome dado ao colégio Pedro II nos primeiros anos da República – durante 1902 e 1908, em pleno “absolutismo laicista”, quando, segundo suas memórias, apesar de muita aplicação exigida dos estudantes: “Sentia-se que tudo aquilo que ali estava eram pedras soltas de uma construção, à qual faltava porém a argamassa”. Solucionar esse problema passava por oferecer uma educação de acordo com os ideais cristãos, os únicos capazes de possibilitar a “formação de uma civilização moral brasileira”. (LIMA, 1931, p. 67-69)

Jônatas Serrano, outro intelectual católico envolvido no debate educacional dos anos 30, também separou em sua análise os conceitos de instrução e educação. No ideal cristão de formação humana, escreveu: “a sociabilidade deve subordinar-se à personalidade; esta à moralidade, que por sua vez se subordina à religiosidade”. Essa relação, onde se encontra o “problema fundamental da educação”, somente teria ficado à margem dos estudos e considerações de muitos intelectuais devido “ao pavor da metafísica de que não logram às vezes emancipar-se robustas inteligências”. Mesmo assim, não haveria mais porque deixar de entender que:

A educação é muito mais do que simples culto da inteligência. É o conjunto de todos os processos tendentes a formar o homem na sua personalidade integral. O objetivo educacional não é fabricar eruditos, nem mesmo sábios, nem perigosos utopistas, estranhos à grande realidade humana, individual e social. O fim supremo da educação é dar uma idéia exata da vida, formando hábitos virtuosos e disciplinando a vontade para a prática do bem. (SERRANO, 1932, p. 19)

O laicismo escolar era apresentado pelos educadores católicos como o grande mal que a modernidade havia introduzido no domínio pedagógico. A supressão do ensino religioso, banido da escola pública pelo agnosticismo do Estado liberal e os preconceitos da ideologia científica do século XIX, fez com que os dirigentes políticos afastassem Deus da escola. As conseqüências, segundo o padre Leonel Franca, reitor da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ), teriam sido as piores possíveis: “Não há exemplo de um só país em que a laicização do ensino houvesse contribuído para a paz, o progresso, a elevação moral da sociedade. Antipedagógica porque impotente para formar a personalidade humana, a escola sem Deus, é necessariamente antisocial”. (FRANCA, 1931, p. 56)

Educar para a vida e a participação social também surge como proposta para revisão que começa a ser feita nas diretorias de instrução pública a partir das reformas estaduais da década de 1920, em que foram aplicados os princípios e os métodos da Escola Nova. Mais uma vez, a palavra formação comanda as intenções de reforma educacional. Convocado pelo prefeito Antônio Prado Júnior, o sociólogo mineiro Fernando de Azevedo veio para o Distrito Federal com o objetivo de colocar em lei o corpus teórico da renovação liberal inspirada nas idéias de Dewey e Kilpatrick. No depoimento deixado acerca da sua ação pedagógica, ele escreveu: “a escola nova, igual para todos (...), não deve tender a sacrificar ou escravizar o indivíduo à comunidade, nem a prescindir os valores morais, na formação da personalidade humana”. (AZEVEDO, 1953, pp. 19-20)

O sentido dado à palavra formação, porém, escapava a qualquer intenção metafísica, projetando-se como necessidade primeira ao convívio humano em uma nova sociedade, que alterava radicalmente as relações familiares, de trabalho e de lazer. As descobertas da psicologia sobre o desenvolvimento infantil levavam a considerar ultrapassadas as leis de rígida disciplina que até então regiam as escolas. A escola renovada desfazia a “disciplina rígida e niveladora da escola tradicional” e se organizava “por uma disciplina livremente consentida, que seja o reflexo de uma disciplina interior”. O desenvolvimento dessa disciplina interna viria de uma maior interação com o conhecimento, buscado por métodos que permitissem “a atividade investigadora e experimental do aluno”. Feita para a participação efetiva da criança, a escola ativa era aquela em que as atividades manuais, intelectuais e sociais estavam fundadas sobre “a sua natureza e as suas necessidades”. (Idem, p. 19)

Ao se apresentar como escola do trabalho, a Escola Nova rompia com séculos de tradição pedagógica contemplativa, entendendo-a como reprodutora da submissão do trabalho manual às artes liberais. No mundo antigo, a cidadania existia apenas para uma minoria de libertos das obrigações do trabalho. O retorno da escravidão nos séculos iniciais da era moderna manteve acesa a divisão entre o mundo intelectual e o mundo prático. A educação e a escola tradicionais preparavam para exercício da autoridade. Os alunos vivenciavam naturalmente a autoridade emanada da escola. As reformas escolares francesas pós-1789, sem romper com a autoridade, procuraram levar a educação primária a todos os cidadãos. Autoridade, disciplina e razão eram princípio, meio e fim dessas escolas. Os renovadores contestavam isso ao afirmarem que os alunos não recebiam o conhecimento pronto e acabado dos seus professores, mas o produziam nas atividades quotidianas. O rompimento com a tradição contemplativa, a escolha do trabalho e da vida ativa como medidas da escola moderna eram atitudes de “rebelião consciente” (ARENDT, 1972, pp. 48-49) deste grupo de educadores contra a tradição escolar da Igreja Católica e dos padres jesuítas.

Bibliografia:

AZEVEDO, Fernando de. Novos caminhos e novos fins (Uma nova política de educação no Brasil). São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1953 [1931].

ARENDT, Hannah. A tradição e a época moderna. In.____________ Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 1972.

FRANCA, Leonel. Ensino religioso e ensino leigo. Rio de Janeiro: Ed. Schmidt, 1931.

LIMA, Alceu Amoroso. Debates pedagógicos. Rio de Janeiro: Schmidt, 1931.

SERRANO, Jonatas. Escola Nova. Rio de Janeiro: Ed. Schmidt, 1932.