sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

CULTURA POLÍTICA: HISTÓRIA DE UM CONCEITO.

O conceito de cultura política consolidou-se na historiografia internacional após a redescoberta do campo da história política. Entre os historiadores franceses esse movimento em defesa do valor e do interesse em estudar a política, em boa parte liderado por René Remond, teve como “lugares de eleição” o Instituto de Estudos Políticos de Paris e a Universidade Paris X Nanterre (BERSTEIN, 1998:349) Os especialistas que hoje reivindicam a primazia dos ganhos conceituais agregados a esse termo pertencem a uma esfera em comum com aqueles que reivindicaram os conceitos de acontecimento, identidade, sociabilidade, geração e memória para dar conta da dinâmica pertencente ao campo político, buscando as suas especificidades em relação a áreas que anteriormente o colonizavam, como o econômico e o social. Eles conseguiram se impor contra a posição corrente à época da fundação da revista dos Annales e da criação da VIª Seção da École Pratique de Hautes Études, então presidida por Lucien Febvre, mas sobretudo durante os “anos Braudel”, quando uma história política strictu sensu era considerada improcedente, pois reunia “um número infindável de defeitos” como os de ser “elitista, anedótica, individualista, factual, subjetiva, psicologizante” (FERREIRA, 1992:265).

A recente retomada do político teve matrizes antropológicas e manteve um diálogo incessante com as Ciências Sociais, em particular com a sociologia compreensiva de Max Weber, George Simmel e Alfred Schutz. Esses estudos levaram a uma releitura de termos clássicos do vocabulário sociológico. Partindo por vezes de Clifford Geetrz, muitos historiadores do político fizeram uma releitura do termo ideologia fora dos enfoques tradicionais, que o antropólogo sintetizou como sendo a “teoria do interesse” e a “teoria da tensão” ( Cf. GEERTZ: 1989) .

A “teoria do interesse”, segundo Geertz, nasceu no marxismo e tornou a ideologia uma arma utilizada pela classe dominante para exercer o seu predomínio em uma sociedade conflitiva como a capitalista. Essa é uma interpretação na qual a existência social precede a existência individual, daí a observação do antropólogo acerca de sua “psicologia demasiado anêmica e sua sociologia excessivamente musculosa” (Idem: 172). A “teoria da tensão” parte da noção de uma “má integração crônica da sociedade”, que aparece nas suas “antinomias insolúveis”, encontradas na relação entre “liberdade e ordem política”, “estabilidade e mudança”, “eficiência e humanidade”, “precisão e flexibilidade”, revelando aspectos subjetivos que, em certa medida, foram levantados pela Escola de Frankfurt, também tributária de Marx (mais propriamente dos manuscritos do Jovem Marx), mas unindo-o a uma certa leitura de Sigmund Freud, em particular nas contribuições de Herbert Marcuse e Erich Fromm. Em sua crítica ao que considerou como visões apriorísticas, Geertz colocou-se a favor de uma abordagem que entende a “ideologia como sistema cultural”, com a qual se pode obter um “mapa da realidade social”, não sendo mais a ideologia um elemento de inversão ou de ocultamento da realidade, mas parte da sua constituição, como um fator que orienta a ação individual, sem, contudo, submeter esta ação a um imperioso sentido final.

Anterior ou paralelamente, historiadores envolvidos em debates de outra natureza, voltados à crítica dos estruturalismos, também tocaram na relação entre cultura e política. No marxismo, E. P. Thompson levou adiante seus estudos sobre a formação da classe operária aproximando política e cultura, cultura e política, enfim, buscando entender as peculiaridades de uma cultura política de classe. Mas se existiu esta afinidade não houve nenhuma auto-percepção da mesma que levasse à necessidade de uma avaliação teórica e um posterior desenvolvimento de pesquisas a partir deste arcabouço conceitual. Na história cultural francesa do início dos anos 1970, Michel De Certeau, embora preocupado com outra sorte de questões, como a apropriação cultural, a história da leitura e o papel dos indivíduos na criação do cotidiano, “as artes do fazer”, possui similitudes que não devem ser esquecidas ou caladas. Mesmo sem se aprofundar (ou talvez até mesmo considerar) o conceito de cultura política, Thompson e De Certeau colocaram algumas questões relevantes quando se quer discutir o assunto. Falar de cultura política é falar naquilo que os movimentos sociais e políticos carregam de específico e muitas vezes contraditório, falar de cultura política é tratar dos elementos simbólicos da adesão e/ou rejeição a determinados projetos de poder e autoridade no campo político. Mas falar de cultura política é perceber a política como uma visão de mundo, como uma atitude perante o mundo que se expressa no agir, no falar, no vestir, no gesticular.

Uma arqueologia do conceito de cultura política, no entanto, nos leva a cientistas políticos que trataram a questão democrática pela presença de uma “cultura cívica” participativa. Um retorno ao século XIX indica que Alexis de Tocqueville já havia pensado questões como essa ao tratar das peculiaridades da democracia na América, mas o conceito começou a conhecer o seu desenvolvimento próprio a partir da contribuição dada pela antropologia norte-americana da “escola da personalidade e cultura”, que moldou a teoria do “caráter nacional” (KUSHNIR & CARNEIRO, 1999: 230). Na ciência política contemporânea, os estudos de Gabriel Almond e Sidney Verba foram os que tocaram mais diretamente nessas questões. Conhecidos como a corrente “desenvolvimentista” dos estudos políticos, estes dois pesquisadores consideravam a possibilidade de haver etapas ou níveis no desenvolvimento político, desde uma “cultura paroquial”, característica de estruturas políticas tradicionais, passando por uma “cultura súdita”, própria de estruturas políticas autoritárias, até uma “cultura ativa”, típica de estruturas liberais-democráticas. Devido a esse sentido finalístico, o modelo de Almond e Verba acabou sendo considerado uma abordagem prejudicial e limitada, alvo de críticas e contraponto ao que acabou se consagrando posteriormente como cultura política.

Os anos 1990 conheceram um freqüente afastamento dos cientistas políticos em relação ao conceito e uma apropriação cada vez maior por parte de historiadores, que se habilitaram a escrever sobre muitos assuntos da história política sob este enfoque: Serge Berstein, Jean François Sirinelli, Michel Winock, Raoul Girardet, Phillipe Tetard, Antoine Proust, Pascal Ory, para ficarmos só entre os franceses, investiram seus esforços em maior ou menor medida neste sentido. Outros dois pontos a serem sublinhados são: 1) que o encontro entre história e cultura política aconteceu em meio à afirmação da História Cultural, tendo esta última legado conceitos importantes, que estão na sua base analítica, como o de representação; 2) que esse encontro aconteceu quando os estudos históricos passaram a considerar cada vez mais as individualidades, revendo conceitos macro-sociológicos e seus possíveis determinismos.

Bibliografia:
BERSTEIN, Serge. A cultura política. In. RIOUX, Jean-Pierre & SIRINELLI, Jean-François. Para uma história cultural. Lisboa: Editorial Estampa, 1998.
FERREIRA, Marieta Morais. A nova “velha história”: o retorno da história política. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 5, n. 10, 1992.
GEERTZ, Clifford. A ideologia como sistema cultural. In. _______________. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1989.
THOMPSON, E. P. A formação da classe operária inglesa. São Paulo: Paz e Terra, 1989.
DE CERTEAU, Michel. A invenção do cotidiano. Petrópolis: Vozes, 1994.
KUSCHINIR, Karina & CARNEIRO, Leandro Piquet. As dimensões subjetivas da política: cultura política e antropologia da política. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 13, nº 24, 1999.

Obs. Esse texto é parte da comunicação apresentada no II Seminário Nacional de História da Historiografia, na Universidade Federal de Ouro Preto, em agosto de 2008, "Cultura Política: História e possibilidades de um conceito".

Os “anos críticos”: política social, segurança nacional e a procura da ordem.

O regime Vargas viveu seus “anos críticos” entre 1935 e 1938. Após a expectativa de um pacto democrático, assinalado pela Constituição de 16 de julho de 1934, uma onda repressiva se estabeleceu no país com a decretação da Lei de Segurança Nacional, em abril de 1935, desdobrada na aprovação do “estado de guerra interna” em dezembro daquele ano.

O ímpeto autoritário lançado na esfera pública nesse momento pode ser visto como resposta ao aparecimento de uma experiência política de massas. A criação da Ação Integralista do Brasil (AIB), mas principalmente da Aliança Nacional Libertadora (ANL), não demarcaram apenas a recepção de ideologias antiliberais, à direita e à esquerda, mas o surgimento de novos concorrentes de um governo disposto a intervir na questão social, com efeitos consideráveis na composição da cidadania. Da quase inexistência face ao liberalismo repressivo da Primeira República, bem assinalado na frase atribuída ao presidente Arthur Bernardes, “a questão social é uma questão de polícia”, partia-se para uma forma de cidadania regulada pelo Estado.

A ampliação dos direitos cidadãos era oferecida aos que estavam inseridos nas atividades produtivas, aqueles que aceitavam a disciplina do trabalho. Essa forma de ampliação da cidadania ia ao encontro do receituário corporativista, posto à disposição naquele momento como alternativa à decomposição da sociedade liberal. No período entre – guerras (1919-1939), idéias e práticas corporativistas se espalharam não só em regimes de aspecto totalitário e autoritário, como o Estado fascista de Benito Mussolini (1922) ou o Estado Novo português de Antônio Salazar (1933), mas inclusive em democracias como a norte-americana da era Roosevelt. No Brasil, Oliveira Vianna tornou-se o seu maior incentivador e ideólogo, tratando da necessidade de se ter no Estado a solução para o grave problema da falta de organização social do povo, assunto que já vinha sendo tratado por ele desde a década de 1920, mas que ganhava um maior senso prático a partir de 1932, ano da sua entrada para o corpo técnico do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio.
A introdução da legislação protetora do trabalho quis suprimir a luta de classes anarquista e comunista muito presente nas duas primeiras décadas do século XX. Os seus condutores, considerando-a parte prioritária da política do novo Estado Nacional, não aceitavam qualquer dissenso e competição política em torno das suas conquistas. Quanto a isso, a fala do ministro do trabalho Lindolfo Collor é exemplar:

“Toda agitação deve ser denunciada como inútil e impatriótica nesse momento, quando o governo se esforça por garantir o regular exercício do trabalho dentro das nossas fronteiras. É tempo já de substituirmos o velho e negativo conceito de luta de classes pelo conceito novo, construtor e orgânico de colaboração de classes”.

Nesse quadro, poucos anos depois da Revolução de 1930, popularidade da ANL não podia ser suportada, sendo posta na ilegalidade em pouco tempo. O comentário do seu vice-coordenador regional em São Paulo, o historiador comunista Caio Prado Júnior, salienta a maneira como o governo constitucional de Vargas tratava os seus opositores:

“A democracia não existe no Brasil. E é por isso que assistimos a esse paradoxo de um movimento democrático num regime que se diz democrático ser taxado de extremista e subversivo”.

Para o governo constitucional de 1934, a ANL agredia o propósito da reconstrução nacional, que pela boa vontade dos seus dirigentes se destacava em um mundo em crise e decomposição. A contestação política e social dos aliancistas era vista como “extremista” e “subversiva”, o avesso de uma sociedade ordeira e fundada em princípios cristãos. Os levantes comunistas de novembro de 1935, nas cidades do Rio de Janeiro, Recife e Natal, levaram a concorrência pela questão social a obter novas feições e tornaram palpável a idéia da ameaça revolucionária sobre o país. O combate ao comunismo logo se transformou em um thriller político, cujo episódio central, a captura de Luís Carlos Prestes e sua mulher Olga Benário, aconteceu nas proximidades do bairro carioca do Méier, em março de 1936.
O medo da infiltração comunista e a necessidade de contê-la estiveram espalhados na sociedade. No conteúdo de uma correspondência enviada por Alceu Amoroso Lima ao ministro Gustavo Capanema transparece o anticomunismo católico:

“Devo apenas advertir-lhe que os progressos recentes da Aliança Nacional Libertadora, a feição socialista que vai assumindo o governo municipal do Rio de Janeiro, bem como a impregnação comunista de muitos sindicatos e de alguns elementos do Ministério do Trabalho, vem trazendo à opinião pública do país motivos da mais fundada inquietação.

“E os católicos esperam do governo uma atitude mais enérgica de repressão ao comunismo, que assumiu a figura desse partido político acima mencionado (ANL) para agir hipocritamente à sombra das nossas leis.”.

Nessa correspondência, a ANL é vista como uma forma instrumental de ação comunista em busca da legalidade e novos adeptos. O governo da cidade do Rio Janeiro seria um de seus locais de infiltração mais evidentes, devido à simpatia demonstrada pelo prefeito Pedro Ernesto Baptista para os aliancistas, o que deveria ser contido o mais rápido possível. O diretor de Instrução Pública Anísio Teixeira, e suas idéias renovadoras, tendo iniciado a expansão da rede escolar no Distrito Federal, logo tornou-se alvo de críticas dos católicos, que temiam perder a sua influência na educação das crianças e jovens.

Em meio a demandas como essa, a Mensagem ao Poder Legislativo do ano de 1936 expõe claramente a posição de árbitro e salvaguarda do interesse nacional buscada pelo presidente Vargas. Na parte intitulada “segurança do regime e ordem pública”, encontra-se:

“Já no início da sessão legislativa de 1935, o poder Executivo apelava para o Legislativo, no sentido de obter uma lei especial capaz de garantir a eficácia dos meios repressivos contra os atentados à ordem constituída.

Essa lei, chamada de Segurança Nacional, e aprovada depois de amplo debate, representava premente necessidade, conforme o demonstraram os posteriores acontecimentos.

A situação que exigia essa medida agravou-se, porém, evidenciando a insuficiência dos meios das sanções ali consignadas. Assim o demonstrou o Poder Executivo, na mensagem dirigida ao Legislativo em novembro último, encarecendo a urgência de autorização mais ampla, que lhe permitisse reprimir, com toda energia e rapidez, os surtos subversivos irrompidos em diversas regiões do país e na própria capital”.

Sempre condizentes à defesa da pátria pelos meios legais, as ações do Poder Executivo aparecem nesse documento, na justa proporção daquilo que poderia ser feito contra uma minoria que a ameaçava devido ao uso da força. No discurso oficial, a repressão estatal seria inevitável diante de um inimigo abrigado nas redes de um partido mundial da revolução. A habilidade com que explorou a oposição entre a nação e seus inimigos/traidores comunistas fez com que depois de eleito presidente da República pelo Congresso Nacional, com um mandato de quatro anos a se encerrar no início de 1938, Getúlio Vargas interrompesse, sem maiores oposições, a já existente campanha presidencial em que eram candidatos Plínio Salgado, José Américo de Almeida e Armando Sales de Oliveira.

Era o momento de afirmação do “Estado-ordem”. Getúlio Vargas entrava em cena como o homem providencial, figura com a virtude indispensável para lidar com o infortúnio e a desgraça então presentes no mundo político. A defesa da ordem interna, da pátria e da família, alcançou a projeção imaginária de um “exorcismo do mal” , dando legitimidade às ações do Estado contra a democracia, que culminaram na criação dos Tribunais de Segurança Nacional. Uma “disposição totalitária” assolou o discurso e a prática política, querendo remover da comunidade nacional tudo que fizesse prosperar o comunismo.

No lugar de uma sucessão democrática, Getúlio Vargas trouxe um documento jurídico inspirado no fascismo. Negava a liberdade de expressão, a autonomia dos estados e do Poder Legislativo. Confirmava o exercício do poder pessoal, não tendo criado sua ditadura a partir de alguma organização partidária. O preâmbulo da Constituição de 1937 expôs os motivos de tais medidas e afirmava, voltando à retórica nacionalista/anticomunista, que o governo atendia “às legitimas aspirações do povo brasileiro à paz política e social, profundamente perturbada por conhecidos fatores de desordem, resultantes da crescente agravação dos dissídios partidários, que uma notória propaganda demagógica procura desnaturar em luta de classes”, o que colocava a nação “sob a funesta iminência da guerra civil”.

Bibliografia:

ARAÚJO Rosa Maria Barbosa de. O batismo do trabalho. A experiência de Lindolfo Collor. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1981.

DUTRA, Eliana. O ardil totalitário. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 1997.

GOMES, Ângela de Castro. A invenção do trabalhismo. São Paulo: Vértice, 1988.

_______________________. A práxis corporativista de Oliveira Vianna. In. BASTOS, Élide Rugai e MORAES, João Quartim (Orgs.). O pensamento de Oliveira Vianna. São Paulo: Unicamp, 1993.

LEVINE, Robert. O regime de Vargas. Os anos críticos. Rio de janeiro: Nova Fronteira, 1980.

PARANHOS, Adalberto. O roubo da fala. Origens da ideologia do trabalhismo no Brasil. São Paulo: Boitempo, 1999.

SANTOS, Wanderley Guilherme dos. Cidadania e justiça. A política social na ordem brasileira. Rio de Janeiro, Campus, 1979.