domingo, 20 de setembro de 2009

Instruir ou formar ? O debate educacional da revolução de 1930.

A ênfase no aspecto formativo encontrada na reforma do ensino secundário do ministro Francisco Campos em 1931 estava de acordo com as demandas pedagógicas dos principais grupos que buscavam a hegemonia do campo educacional: católicos e renovadores.

Naquele momento, a palavra formação substituía a palavra instrução, utilizada na Primeira República. O fracasso da educação reduzida à mera instrução, conforme a letra e o espírito da Constituição de 1891, sobressai na narrativa de Alceu Amoroso Lima sobre a sua vivência escolar no Gynasio Nacional – nome dado ao colégio Pedro II nos primeiros anos da República – durante 1902 e 1908, em pleno “absolutismo laicista”, quando, segundo suas memórias, apesar de muita aplicação exigida dos estudantes: “Sentia-se que tudo aquilo que ali estava eram pedras soltas de uma construção, à qual faltava porém a argamassa”. Solucionar esse problema passava por oferecer uma educação de acordo com os ideais cristãos, os únicos capazes de possibilitar a “formação de uma civilização moral brasileira”. (LIMA, 1931, p. 67-69)

Jônatas Serrano, outro intelectual católico envolvido no debate educacional dos anos 30, também separou em sua análise os conceitos de instrução e educação. No ideal cristão de formação humana, escreveu: “a sociabilidade deve subordinar-se à personalidade; esta à moralidade, que por sua vez se subordina à religiosidade”. Essa relação, onde se encontra o “problema fundamental da educação”, somente teria ficado à margem dos estudos e considerações de muitos intelectuais devido “ao pavor da metafísica de que não logram às vezes emancipar-se robustas inteligências”. Mesmo assim, não haveria mais porque deixar de entender que:

A educação é muito mais do que simples culto da inteligência. É o conjunto de todos os processos tendentes a formar o homem na sua personalidade integral. O objetivo educacional não é fabricar eruditos, nem mesmo sábios, nem perigosos utopistas, estranhos à grande realidade humana, individual e social. O fim supremo da educação é dar uma idéia exata da vida, formando hábitos virtuosos e disciplinando a vontade para a prática do bem. (SERRANO, 1932, p. 19)

O laicismo escolar era apresentado pelos educadores católicos como o grande mal que a modernidade havia introduzido no domínio pedagógico. A supressão do ensino religioso, banido da escola pública pelo agnosticismo do Estado liberal e os preconceitos da ideologia científica do século XIX, fez com que os dirigentes políticos afastassem Deus da escola. As conseqüências, segundo o padre Leonel Franca, reitor da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ), teriam sido as piores possíveis: “Não há exemplo de um só país em que a laicização do ensino houvesse contribuído para a paz, o progresso, a elevação moral da sociedade. Antipedagógica porque impotente para formar a personalidade humana, a escola sem Deus, é necessariamente antisocial”. (FRANCA, 1931, p. 56)

Educar para a vida e a participação social também surge como proposta para revisão que começa a ser feita nas diretorias de instrução pública a partir das reformas estaduais da década de 1920, em que foram aplicados os princípios e os métodos da Escola Nova. Mais uma vez, a palavra formação comanda as intenções de reforma educacional. Convocado pelo prefeito Antônio Prado Júnior, o sociólogo mineiro Fernando de Azevedo veio para o Distrito Federal com o objetivo de colocar em lei o corpus teórico da renovação liberal inspirada nas idéias de Dewey e Kilpatrick. No depoimento deixado acerca da sua ação pedagógica, ele escreveu: “a escola nova, igual para todos (...), não deve tender a sacrificar ou escravizar o indivíduo à comunidade, nem a prescindir os valores morais, na formação da personalidade humana”. (AZEVEDO, 1953, pp. 19-20)

O sentido dado à palavra formação, porém, escapava a qualquer intenção metafísica, projetando-se como necessidade primeira ao convívio humano em uma nova sociedade, que alterava radicalmente as relações familiares, de trabalho e de lazer. As descobertas da psicologia sobre o desenvolvimento infantil levavam a considerar ultrapassadas as leis de rígida disciplina que até então regiam as escolas. A escola renovada desfazia a “disciplina rígida e niveladora da escola tradicional” e se organizava “por uma disciplina livremente consentida, que seja o reflexo de uma disciplina interior”. O desenvolvimento dessa disciplina interna viria de uma maior interação com o conhecimento, buscado por métodos que permitissem “a atividade investigadora e experimental do aluno”. Feita para a participação efetiva da criança, a escola ativa era aquela em que as atividades manuais, intelectuais e sociais estavam fundadas sobre “a sua natureza e as suas necessidades”. (Idem, p. 19)

Ao se apresentar como escola do trabalho, a Escola Nova rompia com séculos de tradição pedagógica contemplativa, entendendo-a como reprodutora da submissão do trabalho manual às artes liberais. No mundo antigo, a cidadania existia apenas para uma minoria de libertos das obrigações do trabalho. O retorno da escravidão nos séculos iniciais da era moderna manteve acesa a divisão entre o mundo intelectual e o mundo prático. A educação e a escola tradicionais preparavam para exercício da autoridade. Os alunos vivenciavam naturalmente a autoridade emanada da escola. As reformas escolares francesas pós-1789, sem romper com a autoridade, procuraram levar a educação primária a todos os cidadãos. Autoridade, disciplina e razão eram princípio, meio e fim dessas escolas. Os renovadores contestavam isso ao afirmarem que os alunos não recebiam o conhecimento pronto e acabado dos seus professores, mas o produziam nas atividades quotidianas. O rompimento com a tradição contemplativa, a escolha do trabalho e da vida ativa como medidas da escola moderna eram atitudes de “rebelião consciente” (ARENDT, 1972, pp. 48-49) deste grupo de educadores contra a tradição escolar da Igreja Católica e dos padres jesuítas.

Bibliografia:

AZEVEDO, Fernando de. Novos caminhos e novos fins (Uma nova política de educação no Brasil). São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1953 [1931].

ARENDT, Hannah. A tradição e a época moderna. In.____________ Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 1972.

FRANCA, Leonel. Ensino religioso e ensino leigo. Rio de Janeiro: Ed. Schmidt, 1931.

LIMA, Alceu Amoroso. Debates pedagógicos. Rio de Janeiro: Schmidt, 1931.

SERRANO, Jonatas. Escola Nova. Rio de Janeiro: Ed. Schmidt, 1932.

quinta-feira, 9 de julho de 2009

O ponto de partida: a queda de Zacarias de Góis e o declínio da instituição monárquica.

A moderna idéia republicana aportou no Brasil ainda colonial do século XVIII. Foi vista como inconfidência, conjura, revolução. Esteve entre as abomináveis idéias francesas de igualdade e liberdade, também entre as idéias federalistas norte-americanas. O republicanismo no final do século XIX passou de revolução a partido armado, dos militares; depois partido da ordem, oligárquica, pela política dos governadores de Campos Salles. O ponto de partida da passagem da monarquia à República no Brasil não foi, segundo os historiadores, um movimento popular, mas a perda da credibilidade política de D. Pedro II em relação ao lugar que deveria ocupar no sistema parlamentarista e liberal que a Constituição de 1824 havia deixado na forma da lei. A queda do gabinete de Zacarias de Góis assinala o momento em que o "imperialismo" de D. Pedro II foi desnudado, contribuindo para iniciar o movimento que iria por fim ao seu reinado em 15 de novembro de 1889.

Dois pensadores da História do Brasil,Oliveira Vianna e Sérgio Buarque de Holanda, considerados distantes quanto às suas posições ideológicas, entenderam a ação de D. Pedro II na derrubada de Zacarias de Góis, em 1868, como um momento em que as instituições políticas da monarquia passaram desapercebidas pelo imperador, conduzindo o regime monárquico a uma crise, depois de um período de estabilidade marcado pela “política de conciliação” da década de 1850. Este acontecimento, porém, assumiu conotações distintas entre os dois historiadores.

O primeiro percebeu a queda do gabinete Zacarias, após seis anos de predomínio liberal, longe de qualquer ação de improbidade ou falta de iniciativa em governar. A sua saída da chefia do governo teria sido provocada por uma questão puramente ligada aos interesses partidários. Isso teria ficado claro no episódio que marcou o ponto final da sua permanência à frente do ministério. A recusa em aceitar a escolha, em lista tríplice, de Sales Torres Homem para o Senado pelo Rio Grande do Norte, algo de exclusiva atribuição do Poder Moderador, mas que causou ressentimento ao chefe do partido liberal, que se sentindo desautorizado ao ver seu voto preterido pelo imperador apresentou a demissão coletiva do seu gabinete. Esta teria sido para Oliveira Vianna uma demonstração da dificuldade de Zacarias de Góis em conquistar uma posição de estadista, restando-lhe apenas a condição de homem de partido.

A decisão de D. Pedro II de convocar o conservador Visconde de Itaboraí para substituí-lo, tendo em seguida dissolvido a Câmara dos Deputados e convocado novas eleições, mesmo sabendo que o governo em exercício contava com o apoio e a confiança do parlamento, embora aparentemente dentro dos padrões da política brasileira do século XIX, mereceu o seguinte comentário de Oliveira Vianna:

“Fossem quais fossem os motivos que levaram o imperador a esta atitude, o certo é que este seu ato determinou uma mudança geral no sistema de crenças e idéias dominantes no mundo político de então. Daí por diante começamos um duplo fenômeno: a descrença progressiva nas virtudes do sistema monárquico-parlamentar e uma crescente aspiração por um novo regime, uma nova ordem de coisas”.

A intervenção promovida por D. Pedro II repercutiu então como uso do “poder pessoal”, em detrimento da pura função institucional que caberia ao imperador de acordo com os poderes constituídos, cabendo a esta atitude uma reação inédita da opinião pública dos maiores centros urbanos do país. No entanto, “só os que ignorassem os nossos costumes políticos”, observou Oliveira Vianna, “poderiam supor possível que o Poder Moderador, supremo regulador do sistema parlamentar, pudesse funcionar aqui com a mesma perfeição com que funcionava entre os ingleses”. É desta maneira que o autor de O ocaso do Império introduz a discussão sobre a nossa falta de substância em direitos civis e políticos, a seu ver flagrante, visto que os grandes proprietários de terras controlavam os eleitores e corrompiam as eleições. O modo usual de vencer os pleitos eleitorais no Brasil imperial se dava através de expedientes fraudulentos, como a “eleição a bico de pena”, o uso do “capanga” e do “fósforo”. Na visão de Oliveira Vianna, a política oitocentista era oligárquica, pura expressão de interesses exclusivistas, verdadeiro “Estado de natureza” em sua violência afrontosa e cotidiana. Os dois partidos do Império “não tinham opinião, não tinham programas”, teriam como objetivo único a conquista e a manutenção do poder. Isso tudo seria resultado da permanência de uma sociedade patriarcal, sem estrutura de classes, na qual existiria apenas um “povo sem educação eleitoral” e de “opinião embrionária”.

Em meio a esta descrição surge o elogio a D. Pedro II como uma espécie de “fiel da balança”, num mundo cercado pelas intenções menores dos clãs oligárquicos. Ao contrário da interpretação de Tito Franco de Almeida acerca do “imperialismo” do monarca, que procurou demonstrar como este manteve a vida pública à sua sombra pelos longos (quase) cinqüenta anos de reinado (1840-1889), Oliveira Vianna o via como um homem que havia lutado por “cinqüenta anos contra o partidarismo, o nepotismo, o favoritismo, a politicagem dos ministros”. Evocando Pareto, Vianna afirmou que a intenção do imperador era proceder numa “política rotativa”, com o objetivo de evitar o encastelamento das máquinas partidárias no corpo do Estado, perfazendo aquilo que o sociólogo italiano chamou de “circulação de partidos”. Iniciada em 1868, a crise da monarquia teria sido causada por uma percepção errônea acerca do exagero do poder pessoal. As últimas décadas do século XIX, no entanto, ao apontarem para a necessidade de reformas e inovações profundas, deixaram transparecer a imagem de inaptidão de um soberano oriundo de uma casa reinante saída dos tempos coloniais, causando assim uma penetrante desilusão em relação à instituição monárquica, que a levaria ao fim.

O perfil que Oliveira Vianna traça de D. Pedro II não é senão a defesa de um poder centralizado que atuasse no sentido de desfazer a constante tendência de oligarquização do espaço público, que se afigura como a própria feição de um espaço político não democrático. Na apreensão da personalidade política do imperador revelam-se as escolhas ideológicas de Oliveira Vianna, que demonstra assim a sua visão depreciativa das possibilidades de sucesso da democracia representativa, considerando-a mero produto de uma visão idealizada da realidade nacional.
A imbricação entre o funcionamento do sistema político e o ambiente social em que ele esteve investido também marcou a reflexão de Sérgio Buarque de Holanda, tendo este último escrito que:

“É também no ocaso do Império que vão aparecer mais nitidamente as contradições de um sistema pretensamente parlamentarista, mas onde a decisão última cabia ao chefe de Estado, que em algumas oportunidades a tomou de forma ostensiva. De vez que a explicação para a queda de um ministério, que dispunha de maioria na câmara, ou para sustentação de outro que a não tinha, era dada, quando muito, a círculos restritos, e não resultava, senão raramente, de acurada investigação ou debate de órgãos responsáveis, ficava o imperador”.

Além disso, Sérgio Buarque de Holanda observou que tendo ocorrido em meio a Guerra do Paraguai, conflito em que as tropas brasileiras foram comandadas pelo Duque de Caxias, um militar que exercera a chefia do governo pelo Partido Conservador em duas ocasiões até aquele momento (1856-1857 e 1861-1862), o pedido de demissão de Zacarias de Góis abria a oportunidade para se colocar os conservadores novamente no poder, possibilitando uma maior sintonia entre os poderes civil e militar. A presença do imperador no centro do jogo político, agindo de maneira proeminente para fazer e desfazer ministérios, num momento em que este tipo de conduta já havia sido contida nos países parlamentaristas, mostrava, ao contrário da astúcia política do monarca, salientada por Oliveira Vianna, a ausência de uma opinião pública mais definida e disposta a sustentar uma cultura democrática.

quinta-feira, 30 de abril de 2009

O Ensino Secundário na Era Vargas: invenção de um legado.



O número de brasileiros que prosseguiam os estudos além do primário, entre 1920 e 1940, embora pequeno, havia dobrado. A reforma do Ensino Secundário tornava-se, depois da revolução de 1930, uma das prioridades do governo federal. Desde a gestão Francisco Campos (1931-32) queria-se evitar que este segmento se caracterizasse como um ensino propedêutico, um curso de passagem ao Ensino Superior. Com tal objetivo, introduzida a seriação, foram criados dois ciclos de estudo, o fundamental com cinco anos e o complementar com dois. O interesse em estruturar o nível secundário, assim como a preocupação em criar o ensino universitário, superando o modelo de escolas autônomas e de formação profissional, introduzidas no Brasil por D. João VI em 1808, inclusive com a criação das primeiras faculdades de formação de professores, demonstra a vontade em renovar a formação das elites, que na Primeira República, via de regra, se fazia pela freqüência às faculdades de Direito, que ofereciam a socialização e a técnica necessárias à profissionalização da atividade política.

A modernização do ensino secundário encerrou definitivamente a era dos estudos parcelados, exclusivamente preparatórios ao ensino superior, e abriu a perspectiva de tê-lo, a partir de então, como um espaço mais amplo de formação do caráter. O relatório entregue ao “Senhor chefe do governo provisório” apresentando a sua reforma deixa isso claro:

“De todos os ramos de nosso sistema de educação, é exatamente o ensino secundário o de maior importância, não apenas do ponto de vista quantitativo, como do qualitativo, destinando-se ao maior número e exercendo, durante a fase mais propícia do crescimento físico e mental, a sua influência na formação das qualidades fundamentais da inteligência, do julgamento e do caráter”.

Concebido com um caráter enciclopédico, o Ensino Secundário da Reforma Campos teria 13 matérias obrigatórias e uma facultativa (Alemão) na sua primeira parte, depois se desdobrando em turmas para candidatos aos cursos de Direito, Ciências Médicas e Engenharia.

Anos depois, a administração de Gustavo Capanema aprofundou a relação entre o ensino secundário e a formação do caráter nacional, pensando e levando a termo a construção de uma elite meritocrática, imbuída dos valores da civilização ocidental pela suas fontes clássicas.

Conservando os sete anos de estudos no secundário, a reforma Capanema abandonou a divisão entre um curso Fundamental de cinco anos e um Complementar de dois, para introduzir um curso Ginasial de quatro anos seguido pelas opções do Clássico e do Científico, ambos com três anos de duração. Em seu currículo oferecia o Canto Orfeônico e o Latim nas quatro séries do Ginasial. O Latim voltava a ser estudado nas três séries do Clássico, que também trazia o estudo do Grego. Enquanto isso, as Ciências Naturais ficavam restritas às duas últimas séries do Ginasial, reaparecendo como Biologia no último ano do Clássico e nos dois últimos anos do Científico.

Inspirada na ideologia do nacionalismo autoritário de Francisco Campos, a reforma de 1942 partilhava, ainda que tardiamente, a idéia de que uma mudança inevitável nos rumos da história mundial, provocada pela falência das instituições liberais e a ascensão política das massas, levava à necessidade de um Estado forte e promotor da ordem. Em uma conferência de 1935, Francisco Campos apresentava esse argumento ao público presente e enfatizava a importância da educação diante da crise das democracias:

“Esse mundo está mudando à nossa vista, e mudando sem nenhuma atenção para com as nossas idéias e os nossos desejos. Nele a nossa geração não encontra resposta satisfatória às questões que aprendeu a formular (...). Que esta é a situação em que nos encontramos há mais de vinte anos é o que mostra, com relevo extraordinário, o movimento que se vem operando na educação. A esta é que incumbe, com efeito, adaptar o homem às novas situações. Nenhum setor, portanto, refletirá com mais fidelidade a inquietação contemporânea do que aquele cuja função consiste precisamente em adaptar o homem ao ambiente espiritual do nosso tempo”.

Qual seria o “ambiente espiritual do nosso tempo” ? A transição do individualismo à política de massas. Francisco Campos entendia que a participação das massas na política, devido a sua “fascinação” pela “personalidade carismática”, trazia elementos até então inéditos no pensamento político. O primeiro deles era a incapacidade da democracia liberal em lidar com essas mudanças, pois o “regime político das massas é o da ditadura”. O Estado Nacional surgido com a revolução de 1930 viveu o drama da adaptação a essa nova era, correndo o risco das massas emergentes aceitarem a pior das ditaduras: o comunismo. O Estado Novo corrigia esse problema, integrando “o país no senso das suas realidades e no quadro das suas forças criadoras”.

As concepções educacionais da década de 30 foram lidas a partir do drama descrito por Campos. Os renovadores liberais, suas propostas para democratizar a escola e organizar o conhecimento a partir de uma postura ativa dos alunos, não percebiam o idealismo de suas propostas. Os católicos estavam mais afinados com o novo Estado Nacional, que propunha a refundação do Brasil indo às suas origens. O discurso proferido por Gustavo Capanema durante as comemorações do centenário do Colégio Pedro II, em dezembro de 1937, logo após o golpe de Estado que selou o fim da democracia orientada pela Constituição de 1934, agrega-se a essa forma de entender as disputas no campo pedagógico das décadas de 1930 e 40, sendo uma das melhores exposições sobre a orientação dada pelo ministro à política educacional do regime autoritário de Vargas.


Bibliografia:

ADORNO, Sérgio. Os aprendizes do poder (bacharelismo liberal na Primeira República). São Paulo: Brasiliense, 1987.

ROMANELLI, Otaíza. História da Educação no Brasil (1930-1973). Petrópolis: Vozes, 1980.

CAMPOS, Francisco. Reforma do Ensino Secundário. In. Educação e cultura. Rio de Janeiro: Livraria José Olimpio Editora, 1941

________________. O Estado Nacional. Brasília: Senado Federal, 2001.

SILVA, Geraldo Bastos da. A educação secundária: perspectiva histórica e teoria. São Paulo: Editora Nacional,1969.

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quinta-feira, 12 de março de 2009

Estado Novo: qual ideologia ?

No Brasil, a acelaração e a generalização da economia capitalista aconteceram durante a Era Vargas e sob o predomínio de um pensamento autoritário, mas também nacionalista, que se via na obrigação de criar as condições institucionais para o desenvolvimento de uma moderna sociedade orgânica, com forte presença estatal (FONSECA, 1999: 191). O Estado Novo, como regime autoritário e modernizador em vários sentidos, a começar pela instituição do moderno Estado-nação e de seus órgãos técnicos, mesmo que se distancie da experiência fascista, pela falta de um movimento de mobilização das massas que o antecedesse e perpassasse sua existência, causando uma revolução, se singulariza ao pressionar por uma modernização que se afasta de uma maior distribuição de recursos e possibilidades de autonomia individual e coletiva, indo ao encontro da idéia de um movimento político regressivo (NEUMAN, 1969: 303) e aproximando-se daquilo que uma vasta literatura na área das ciências sociais tratou como modernização conservadora.

O impacto e a profundidade do Estado Novo, mesmo podendo ser capturados pela forma interpretativa da modernização conservadora não se aproximam dos resultados econômicos obtidos pela via prussiana para o capitalismo, quando através da centralização do poder, entre o final do século XIX e o início do século XX, foi possível organizar uma comunidade nacional e transformar esse país em uma nova potência industrial e militar, retirando-o da periferia do sistema capitalista mundial e trazendo uma forma de modernização concorrente ao modelo liberal, que mesclava continuidade e mudança, mantendo um espaço suficiente para a antiga aristocracia agrária controlar o processo que, com o tempo, levaria a uma desagregação do seu próprio poder, por meio de um Estado não apenas interventor, mas redistribuidor de recursos. Essa comparação é interessante, em especial por levar-nos a perceber, antes de tudo, que a chegada da sociedade e da política de massas na Alemanha pertence a esse mesmo contexto histórico. Um arquiconservador, Bismarck teve que enfrentar a organização da classe trabalhadora em um partido de massas, a social-democracia, contra a qual aprovou no parlamento alemão leis anti-socialistas rigorosas. Na mesma medida em que tratava de evitar o associativismo político radical, Bismarck deixou uma extensa regulamentação estatal no campo previdenciário, assim como deu continuidade a presença do Estado como gestor das paixões políticas, estimulando o nacionalismo.

Esses elementos de contenção aparecem no Brasil: ataque à esquerda, leis que amenizam o conflito entre capital e trabalho e nacional-estatismo formaram a base da política de Vargas nos anos 30. A resposta de Vargas à crescente política de massas do seu tempo, no entanto foi uma revolução conservadora bastante mais limitada.

Então, qual ideologia teria dado sentido ao Estado Novo ? Em primeiro lugar, deve-se dizer que esta não foi unitária, nem definitivamente elaborada no plano das idéias políticas. Foi uma apropriação de vários elementos que marcaram não só o momento conservador e autoritário da década de 1930, mas que se acumulavam na história republicana do Brasil. O âmago dessa ideologia foi o Estado, representado na figura de Getúlio Vargas. Ele encarnou razão e sensibilidade, autoridade e afeto, ousadia e moderação. O Estado Novo foi uma experiência autoritária que extinguiu a autonomia dos estados, levou o presidente a governar por decretos-lei, censurou a imprensa, perseguiu e encarcerou sistematicamente os seus opositores. O jargão político do regime, “trabalhadores do Brasil”, por sua vez, colocava em cena uma comunidade que acabava de ser inventada pelo poder das palavras. E essa era uma comunidade política, o que expunha até que ponto o país havia avançado quanto à aparição de uma sociedade de classes, mas também o quanto se apostava na formação de uma democracia centralizadora e incorporadora das massas trabalhadoras urbanas, com o intuito de refazer o sentido da convivência social, como também de mover o Estado Novo à continuidade, o que acabou se realizando com a manutenção do mais significativo de seu arcabouço institucional e político durante a democracia que o sucedeu.

O Estado Novo associou corporativismo, tecnocracia, modernismo e nacionalismo, numa composição que possuía cores tradicionais e tonalidades avançadas para o Brasil daquele momento. Do lado da tradição ficou o setor da Educação Pública, que não avançou no sentido da universalização do ensino fundamental, isso sem considerarmos a falta de uma formação mais atualizada dos estudantes, sobretudo na área da divulgação científica. Do lado do avanço, deve-se registrar a criação de órgãos que serviram como referência à organização e planejamento estatais: o Departamento de Administração e Serviço Público (DASP) e o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

De difícil definição e entendimento por parte dos mais intérpretes mais exigentes, o Estado Novo prima pela sua duradoura carreira de polêmicas, sendo recentemente apontado como parte de um passado que precisaria ser definitivamente arquivado, mas que ainda não foi. A maior proeza deste regime foi a de ter enraizado uma vertente do pensamento político brasileiro, o estatismo. O Estado brasileiro pós-30 torna-se “o agente central da transformação do país” (TOURAINE, 1989: 218). A centralidade estatal procurada por Vargas, no entanto, não eliminou os muitos outros elementos que fazem parte da política brasileira e que continuaram fluindo em pleno autoritarismo: clientelismo, acordos pessoais, enfim, a influência do privado na esfera pública. Como em Casa Grande & Senzala, de Gilberto Freyre, o Brasil do Estado Novo conteve uma busca incessante pelo “equilíbrio de antagonismos”. Mas diante de um mundo cada vez mais impaciente quanto aos posicionamentos políticos, devido à guerra e à crise da civilização ocidental, o regime de Vargas surpreendeu ao deixar os seus afetos fascistizantes e invadir a pátria de Mussolini. Será que só para mostrar que o Brasil não é para iniciantes ?

Bibliografia:

ARAÚJO, Ricardo Benzaquem de. Guerra e paz. Casa-grande e Senzala e a obra de Gilberto Freyre nos anos 30. São Paulo, Editora 34, 1994.

__________________________. O dono da casa. Notas sobre a imagem do poder no mito Vargas. Religião e Sociedade, 13/2, julho de 1986, pp. 102-122.

FONSECA, Pedro Cezar Dutra. Vargas: o capitalismo em construção. São Paulo: Brasiliense, 1999.

MOORE Jr., Barrington. As origens sociais da ditadura e da democracia. Lisboa: Edições Cosmos, 1975.

NEUMAN, Franz. Estado Democrático e Estado Autoritário. Rio de Janeiro: Zahar, 1969.

TOURAINE, Alain. Palavra e sangue. São Paulo: Unicamp, 1989.

Trecho da palestra "Estado Novo: qual ideologia ?", apresentada no seminário sobre 0s 70 anos do Estado Novo, realizado pelo departamento de Letras da UERJ em dezembro de 2007. Posteriormente publicada como capítulo do livro de PEREIRA, Victor Hugo Adler e PONTES,Geraldo (Orgs.)O velho, o novo, o reciclável Estado Novo.Rio de Janeiro: De Letras, 2008.

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

CULTURA POLÍTICA: HISTÓRIA DE UM CONCEITO.

O conceito de cultura política consolidou-se na historiografia internacional após a redescoberta do campo da história política. Entre os historiadores franceses esse movimento em defesa do valor e do interesse em estudar a política, em boa parte liderado por René Remond, teve como “lugares de eleição” o Instituto de Estudos Políticos de Paris e a Universidade Paris X Nanterre (BERSTEIN, 1998:349) Os especialistas que hoje reivindicam a primazia dos ganhos conceituais agregados a esse termo pertencem a uma esfera em comum com aqueles que reivindicaram os conceitos de acontecimento, identidade, sociabilidade, geração e memória para dar conta da dinâmica pertencente ao campo político, buscando as suas especificidades em relação a áreas que anteriormente o colonizavam, como o econômico e o social. Eles conseguiram se impor contra a posição corrente à época da fundação da revista dos Annales e da criação da VIª Seção da École Pratique de Hautes Études, então presidida por Lucien Febvre, mas sobretudo durante os “anos Braudel”, quando uma história política strictu sensu era considerada improcedente, pois reunia “um número infindável de defeitos” como os de ser “elitista, anedótica, individualista, factual, subjetiva, psicologizante” (FERREIRA, 1992:265).

A recente retomada do político teve matrizes antropológicas e manteve um diálogo incessante com as Ciências Sociais, em particular com a sociologia compreensiva de Max Weber, George Simmel e Alfred Schutz. Esses estudos levaram a uma releitura de termos clássicos do vocabulário sociológico. Partindo por vezes de Clifford Geetrz, muitos historiadores do político fizeram uma releitura do termo ideologia fora dos enfoques tradicionais, que o antropólogo sintetizou como sendo a “teoria do interesse” e a “teoria da tensão” ( Cf. GEERTZ: 1989) .

A “teoria do interesse”, segundo Geertz, nasceu no marxismo e tornou a ideologia uma arma utilizada pela classe dominante para exercer o seu predomínio em uma sociedade conflitiva como a capitalista. Essa é uma interpretação na qual a existência social precede a existência individual, daí a observação do antropólogo acerca de sua “psicologia demasiado anêmica e sua sociologia excessivamente musculosa” (Idem: 172). A “teoria da tensão” parte da noção de uma “má integração crônica da sociedade”, que aparece nas suas “antinomias insolúveis”, encontradas na relação entre “liberdade e ordem política”, “estabilidade e mudança”, “eficiência e humanidade”, “precisão e flexibilidade”, revelando aspectos subjetivos que, em certa medida, foram levantados pela Escola de Frankfurt, também tributária de Marx (mais propriamente dos manuscritos do Jovem Marx), mas unindo-o a uma certa leitura de Sigmund Freud, em particular nas contribuições de Herbert Marcuse e Erich Fromm. Em sua crítica ao que considerou como visões apriorísticas, Geertz colocou-se a favor de uma abordagem que entende a “ideologia como sistema cultural”, com a qual se pode obter um “mapa da realidade social”, não sendo mais a ideologia um elemento de inversão ou de ocultamento da realidade, mas parte da sua constituição, como um fator que orienta a ação individual, sem, contudo, submeter esta ação a um imperioso sentido final.

Anterior ou paralelamente, historiadores envolvidos em debates de outra natureza, voltados à crítica dos estruturalismos, também tocaram na relação entre cultura e política. No marxismo, E. P. Thompson levou adiante seus estudos sobre a formação da classe operária aproximando política e cultura, cultura e política, enfim, buscando entender as peculiaridades de uma cultura política de classe. Mas se existiu esta afinidade não houve nenhuma auto-percepção da mesma que levasse à necessidade de uma avaliação teórica e um posterior desenvolvimento de pesquisas a partir deste arcabouço conceitual. Na história cultural francesa do início dos anos 1970, Michel De Certeau, embora preocupado com outra sorte de questões, como a apropriação cultural, a história da leitura e o papel dos indivíduos na criação do cotidiano, “as artes do fazer”, possui similitudes que não devem ser esquecidas ou caladas. Mesmo sem se aprofundar (ou talvez até mesmo considerar) o conceito de cultura política, Thompson e De Certeau colocaram algumas questões relevantes quando se quer discutir o assunto. Falar de cultura política é falar naquilo que os movimentos sociais e políticos carregam de específico e muitas vezes contraditório, falar de cultura política é tratar dos elementos simbólicos da adesão e/ou rejeição a determinados projetos de poder e autoridade no campo político. Mas falar de cultura política é perceber a política como uma visão de mundo, como uma atitude perante o mundo que se expressa no agir, no falar, no vestir, no gesticular.

Uma arqueologia do conceito de cultura política, no entanto, nos leva a cientistas políticos que trataram a questão democrática pela presença de uma “cultura cívica” participativa. Um retorno ao século XIX indica que Alexis de Tocqueville já havia pensado questões como essa ao tratar das peculiaridades da democracia na América, mas o conceito começou a conhecer o seu desenvolvimento próprio a partir da contribuição dada pela antropologia norte-americana da “escola da personalidade e cultura”, que moldou a teoria do “caráter nacional” (KUSHNIR & CARNEIRO, 1999: 230). Na ciência política contemporânea, os estudos de Gabriel Almond e Sidney Verba foram os que tocaram mais diretamente nessas questões. Conhecidos como a corrente “desenvolvimentista” dos estudos políticos, estes dois pesquisadores consideravam a possibilidade de haver etapas ou níveis no desenvolvimento político, desde uma “cultura paroquial”, característica de estruturas políticas tradicionais, passando por uma “cultura súdita”, própria de estruturas políticas autoritárias, até uma “cultura ativa”, típica de estruturas liberais-democráticas. Devido a esse sentido finalístico, o modelo de Almond e Verba acabou sendo considerado uma abordagem prejudicial e limitada, alvo de críticas e contraponto ao que acabou se consagrando posteriormente como cultura política.

Os anos 1990 conheceram um freqüente afastamento dos cientistas políticos em relação ao conceito e uma apropriação cada vez maior por parte de historiadores, que se habilitaram a escrever sobre muitos assuntos da história política sob este enfoque: Serge Berstein, Jean François Sirinelli, Michel Winock, Raoul Girardet, Phillipe Tetard, Antoine Proust, Pascal Ory, para ficarmos só entre os franceses, investiram seus esforços em maior ou menor medida neste sentido. Outros dois pontos a serem sublinhados são: 1) que o encontro entre história e cultura política aconteceu em meio à afirmação da História Cultural, tendo esta última legado conceitos importantes, que estão na sua base analítica, como o de representação; 2) que esse encontro aconteceu quando os estudos históricos passaram a considerar cada vez mais as individualidades, revendo conceitos macro-sociológicos e seus possíveis determinismos.

Bibliografia:
BERSTEIN, Serge. A cultura política. In. RIOUX, Jean-Pierre & SIRINELLI, Jean-François. Para uma história cultural. Lisboa: Editorial Estampa, 1998.
FERREIRA, Marieta Morais. A nova “velha história”: o retorno da história política. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 5, n. 10, 1992.
GEERTZ, Clifford. A ideologia como sistema cultural. In. _______________. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1989.
THOMPSON, E. P. A formação da classe operária inglesa. São Paulo: Paz e Terra, 1989.
DE CERTEAU, Michel. A invenção do cotidiano. Petrópolis: Vozes, 1994.
KUSCHINIR, Karina & CARNEIRO, Leandro Piquet. As dimensões subjetivas da política: cultura política e antropologia da política. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 13, nº 24, 1999.

Obs. Esse texto é parte da comunicação apresentada no II Seminário Nacional de História da Historiografia, na Universidade Federal de Ouro Preto, em agosto de 2008, "Cultura Política: História e possibilidades de um conceito".

Os “anos críticos”: política social, segurança nacional e a procura da ordem.

O regime Vargas viveu seus “anos críticos” entre 1935 e 1938. Após a expectativa de um pacto democrático, assinalado pela Constituição de 16 de julho de 1934, uma onda repressiva se estabeleceu no país com a decretação da Lei de Segurança Nacional, em abril de 1935, desdobrada na aprovação do “estado de guerra interna” em dezembro daquele ano.

O ímpeto autoritário lançado na esfera pública nesse momento pode ser visto como resposta ao aparecimento de uma experiência política de massas. A criação da Ação Integralista do Brasil (AIB), mas principalmente da Aliança Nacional Libertadora (ANL), não demarcaram apenas a recepção de ideologias antiliberais, à direita e à esquerda, mas o surgimento de novos concorrentes de um governo disposto a intervir na questão social, com efeitos consideráveis na composição da cidadania. Da quase inexistência face ao liberalismo repressivo da Primeira República, bem assinalado na frase atribuída ao presidente Arthur Bernardes, “a questão social é uma questão de polícia”, partia-se para uma forma de cidadania regulada pelo Estado.

A ampliação dos direitos cidadãos era oferecida aos que estavam inseridos nas atividades produtivas, aqueles que aceitavam a disciplina do trabalho. Essa forma de ampliação da cidadania ia ao encontro do receituário corporativista, posto à disposição naquele momento como alternativa à decomposição da sociedade liberal. No período entre – guerras (1919-1939), idéias e práticas corporativistas se espalharam não só em regimes de aspecto totalitário e autoritário, como o Estado fascista de Benito Mussolini (1922) ou o Estado Novo português de Antônio Salazar (1933), mas inclusive em democracias como a norte-americana da era Roosevelt. No Brasil, Oliveira Vianna tornou-se o seu maior incentivador e ideólogo, tratando da necessidade de se ter no Estado a solução para o grave problema da falta de organização social do povo, assunto que já vinha sendo tratado por ele desde a década de 1920, mas que ganhava um maior senso prático a partir de 1932, ano da sua entrada para o corpo técnico do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio.
A introdução da legislação protetora do trabalho quis suprimir a luta de classes anarquista e comunista muito presente nas duas primeiras décadas do século XX. Os seus condutores, considerando-a parte prioritária da política do novo Estado Nacional, não aceitavam qualquer dissenso e competição política em torno das suas conquistas. Quanto a isso, a fala do ministro do trabalho Lindolfo Collor é exemplar:

“Toda agitação deve ser denunciada como inútil e impatriótica nesse momento, quando o governo se esforça por garantir o regular exercício do trabalho dentro das nossas fronteiras. É tempo já de substituirmos o velho e negativo conceito de luta de classes pelo conceito novo, construtor e orgânico de colaboração de classes”.

Nesse quadro, poucos anos depois da Revolução de 1930, popularidade da ANL não podia ser suportada, sendo posta na ilegalidade em pouco tempo. O comentário do seu vice-coordenador regional em São Paulo, o historiador comunista Caio Prado Júnior, salienta a maneira como o governo constitucional de Vargas tratava os seus opositores:

“A democracia não existe no Brasil. E é por isso que assistimos a esse paradoxo de um movimento democrático num regime que se diz democrático ser taxado de extremista e subversivo”.

Para o governo constitucional de 1934, a ANL agredia o propósito da reconstrução nacional, que pela boa vontade dos seus dirigentes se destacava em um mundo em crise e decomposição. A contestação política e social dos aliancistas era vista como “extremista” e “subversiva”, o avesso de uma sociedade ordeira e fundada em princípios cristãos. Os levantes comunistas de novembro de 1935, nas cidades do Rio de Janeiro, Recife e Natal, levaram a concorrência pela questão social a obter novas feições e tornaram palpável a idéia da ameaça revolucionária sobre o país. O combate ao comunismo logo se transformou em um thriller político, cujo episódio central, a captura de Luís Carlos Prestes e sua mulher Olga Benário, aconteceu nas proximidades do bairro carioca do Méier, em março de 1936.
O medo da infiltração comunista e a necessidade de contê-la estiveram espalhados na sociedade. No conteúdo de uma correspondência enviada por Alceu Amoroso Lima ao ministro Gustavo Capanema transparece o anticomunismo católico:

“Devo apenas advertir-lhe que os progressos recentes da Aliança Nacional Libertadora, a feição socialista que vai assumindo o governo municipal do Rio de Janeiro, bem como a impregnação comunista de muitos sindicatos e de alguns elementos do Ministério do Trabalho, vem trazendo à opinião pública do país motivos da mais fundada inquietação.

“E os católicos esperam do governo uma atitude mais enérgica de repressão ao comunismo, que assumiu a figura desse partido político acima mencionado (ANL) para agir hipocritamente à sombra das nossas leis.”.

Nessa correspondência, a ANL é vista como uma forma instrumental de ação comunista em busca da legalidade e novos adeptos. O governo da cidade do Rio Janeiro seria um de seus locais de infiltração mais evidentes, devido à simpatia demonstrada pelo prefeito Pedro Ernesto Baptista para os aliancistas, o que deveria ser contido o mais rápido possível. O diretor de Instrução Pública Anísio Teixeira, e suas idéias renovadoras, tendo iniciado a expansão da rede escolar no Distrito Federal, logo tornou-se alvo de críticas dos católicos, que temiam perder a sua influência na educação das crianças e jovens.

Em meio a demandas como essa, a Mensagem ao Poder Legislativo do ano de 1936 expõe claramente a posição de árbitro e salvaguarda do interesse nacional buscada pelo presidente Vargas. Na parte intitulada “segurança do regime e ordem pública”, encontra-se:

“Já no início da sessão legislativa de 1935, o poder Executivo apelava para o Legislativo, no sentido de obter uma lei especial capaz de garantir a eficácia dos meios repressivos contra os atentados à ordem constituída.

Essa lei, chamada de Segurança Nacional, e aprovada depois de amplo debate, representava premente necessidade, conforme o demonstraram os posteriores acontecimentos.

A situação que exigia essa medida agravou-se, porém, evidenciando a insuficiência dos meios das sanções ali consignadas. Assim o demonstrou o Poder Executivo, na mensagem dirigida ao Legislativo em novembro último, encarecendo a urgência de autorização mais ampla, que lhe permitisse reprimir, com toda energia e rapidez, os surtos subversivos irrompidos em diversas regiões do país e na própria capital”.

Sempre condizentes à defesa da pátria pelos meios legais, as ações do Poder Executivo aparecem nesse documento, na justa proporção daquilo que poderia ser feito contra uma minoria que a ameaçava devido ao uso da força. No discurso oficial, a repressão estatal seria inevitável diante de um inimigo abrigado nas redes de um partido mundial da revolução. A habilidade com que explorou a oposição entre a nação e seus inimigos/traidores comunistas fez com que depois de eleito presidente da República pelo Congresso Nacional, com um mandato de quatro anos a se encerrar no início de 1938, Getúlio Vargas interrompesse, sem maiores oposições, a já existente campanha presidencial em que eram candidatos Plínio Salgado, José Américo de Almeida e Armando Sales de Oliveira.

Era o momento de afirmação do “Estado-ordem”. Getúlio Vargas entrava em cena como o homem providencial, figura com a virtude indispensável para lidar com o infortúnio e a desgraça então presentes no mundo político. A defesa da ordem interna, da pátria e da família, alcançou a projeção imaginária de um “exorcismo do mal” , dando legitimidade às ações do Estado contra a democracia, que culminaram na criação dos Tribunais de Segurança Nacional. Uma “disposição totalitária” assolou o discurso e a prática política, querendo remover da comunidade nacional tudo que fizesse prosperar o comunismo.

No lugar de uma sucessão democrática, Getúlio Vargas trouxe um documento jurídico inspirado no fascismo. Negava a liberdade de expressão, a autonomia dos estados e do Poder Legislativo. Confirmava o exercício do poder pessoal, não tendo criado sua ditadura a partir de alguma organização partidária. O preâmbulo da Constituição de 1937 expôs os motivos de tais medidas e afirmava, voltando à retórica nacionalista/anticomunista, que o governo atendia “às legitimas aspirações do povo brasileiro à paz política e social, profundamente perturbada por conhecidos fatores de desordem, resultantes da crescente agravação dos dissídios partidários, que uma notória propaganda demagógica procura desnaturar em luta de classes”, o que colocava a nação “sob a funesta iminência da guerra civil”.

Bibliografia:

ARAÚJO Rosa Maria Barbosa de. O batismo do trabalho. A experiência de Lindolfo Collor. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1981.

DUTRA, Eliana. O ardil totalitário. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 1997.

GOMES, Ângela de Castro. A invenção do trabalhismo. São Paulo: Vértice, 1988.

_______________________. A práxis corporativista de Oliveira Vianna. In. BASTOS, Élide Rugai e MORAES, João Quartim (Orgs.). O pensamento de Oliveira Vianna. São Paulo: Unicamp, 1993.

LEVINE, Robert. O regime de Vargas. Os anos críticos. Rio de janeiro: Nova Fronteira, 1980.

PARANHOS, Adalberto. O roubo da fala. Origens da ideologia do trabalhismo no Brasil. São Paulo: Boitempo, 1999.

SANTOS, Wanderley Guilherme dos. Cidadania e justiça. A política social na ordem brasileira. Rio de Janeiro, Campus, 1979.

sábado, 24 de janeiro de 2009

Vargas e o Estado Nacional

A revolução de 1930, mesmo saindo de cisões no interior das oligarquias da Primeira República, em que o Rio Grande do Sul e Minas Gerais protagonizaram a oposição ao continuismo paulista de Júlio Prestes, teve forte apelo antioligárquico, moderado, é claro, pela falta de hegemonia que provocou, na clássica acepção de Boris Fausto, um Estado de Compromisso. Esse rompimento com a composição oligárquica antecedente, mesmo que parcial, correu pela instalação de um Estado centralizador, via interventores escolhidos pelo governo central.

O processo de derrubada dos poderes locais nada teve de retilíneo. O exemplo de Minas Gerais talvez seja o mais eloqüente em mostrar a força renovatória de antigos líderes oligárquicos e o quanto esses se movimentaram, ou até mesmo inventaram a revolução. Lá, não somente Antônio Carlos, mas Bernardes e Wenceslau, cerraram fileiras em outubro de 30. A presença do presidente que perseguiu o tenentismo na década de 20 logo provocou um mal-estar, ainda mais eloqüente após o apoio deste à revolução paulista de 32.

A luta contra as oligarquias teria no Estado Nacional o seu contrário. No país independente desde 1822, a revoução de 30 prometeu instalar padrões menos personalistas e mais racionais de administração pública. Essa tarefa certamente encontrou dificuldades ao lidar com a falta de institucionalização política, ao menos no sentido que hoje entendemos por uma democracia liberal. O governo provisório durou quatro anos, o Estado Novo sete e a democracia de 34, três. Nesses quinze anos, buscou-se edificar essa nova forma estatal, rejeitando-se a cultura do bacharelismo jurídico, e, em seu lugar, introduzindo práticas consideradas científicas em diferentes áreas, na escolha de objetivos e nas práticas diárias de gestão. Essa atitude pode ser descrita como a admissão do moderno. A questão que nos resta é o quanto ficou descoberto na ponta da tradição política e cultural brasileira, ou seja, o quanto a modernização brasileira dos anos 30 e 40 do século passado, manteve do passado.

Bibliografia:

BOMENY, Helena. A estratégia da conciliação: Minas Gerais e a abertura política dos anos 30. In.GOMES, Ângela de Castro. Regionalismo e centralização política. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira,1980.

VIANNA, Luiz Werneck. A revolução passiva: Iberismo e americanismo no Brasil. Rio de Janeiro: Revan,1997.